Em meio à mesmice do noticiário policial dos últimos dias, uma ocorrência me chamou a atenção, não apenas pela banalidade da situação como pela indiferença com que foi tratada pela mídia: a prisão em flagrante de dois homens, acusados de roubarem R$370 de uma padaria no bairro da Ribeira, na Península Itapagipana. Segundo nota postada no site da Secretaria da Segurança Pública (SSP-BA), a dupla foi capturada, quando tentava fugir num ônibus.
E o que haveria de especial no fato? Quantas centenas de ladrõezinhos pés-de-chinelo desse tipo devem abarrotar as carceragens das delegacias país afora? Quantos bandidos chinfrins desse quilate estão neste exato momento atazanando a vida de pequenos comerciantes aqui mesmo em Salvador? O que destacaria R.R.C. 26 anos, e A.A.G., 28, da massa informe de criminosos que superlotam as nossas cadeias?…
Em primeiro lugar, destaque para a curta distância entre crime e castigo. Embora, evidentemente, nada garanta que a prisão flagrante seja a garantia de que o caso venha a gerar um processo criminal. Até porque,segundo as estatísticas referentes à impunidade, menos de 10% das ocorrências registradas nas delegacias chegam aos tribunais, uma situação plenamente contextualizada no artigo Sociologia da delinquência: a iniciação do jovem do sociólogo Gey Espinheira (1947-2009).
“O crime compensa, e a prova disso é o fato de que menos de dez por cento dos registros de crimes se transformam em processo legal. E esta proporção, entre zero e dez por cento é variável no tempo e representa a instituição da impunidade como um referencial estimulante para a preservação das práticas criminosas e para novos contingentes que chegam para renovar e aumentar o exército dos que se dedicam a atividades criminosas nas mais diversas modalidades.”
De todo o modo, o fato de a polícia estar no local certo, na hora certa, não deixa de ser uma grata surpresa. Como se sabe, nem sempre é possível contar com uma resposta assim tão imediata.
Outro aspecto que chama atenção no caso dos dois ladrões de galinha (ou de padaria, pra ser mais exata) é que um deles disse ser um trabalhador atravessando um período de dificuldades financeiras. Apresentou carteira de trabalho assinada e alegou ter roubado para pagar o aluguel da casa em que mora. Ora, cometer crimes não é a saída para resolver problemas de orçamento, certo? Se assim fosse, sairíamos todos de arma em punho, acertando a fatura do cartão de crédito aqui, ajeitando a lista do supermercado acolá, tomando a mensalidade da escola do filho mais além. Digo isso para deixar bem claro que não sou a favor de qualquer modalidade de crime, tenha a justificativa que tiver.
Por outro lado, a alegação apresentada pelos acusados – e admitindo-se que seja verdadeira – suscita a reflexão sobre as diferenças abissais entre o tratamento que se dá ao “ladrão de tostão” e ao “ladrão de milhão”. Ressalve-se que ambos deveriam ser chamados às barras da Justiça para acertar as contas à luz da lei. Mas não é o que ocorre. Bandidos que assaltam os cofres públicos e literalmente roubam o leite das crianças (vide os envolvidos na chamada Operação Carcará da Bahia) podem até ser presos num primeiro momento, aquele em que as autoridades policiais se dedicam à pirotecnia e aos holofotes. Entretanto, como demonstra a história recente, mal as câmeras e as luzes são desligadas, saem pela mesma porta por onde entraram pouco antes, beneficiados por remédios legais prescritos a pedido de bem pagos advogados. Com os bandidinhos de meia tigela acontece o contrário: vão para a cadeia sem qualquer alarde e lá permanecem até que algum defensor público se dê conta de sua existência.
Longe de representarem uma novidade, essas diferenças existem desde que o Brasil é Brasil, como constata no artigo Impunidade no Brasil – Colônia e Império o advogado Luís Francisco Carvalho Filho, autor de O que é pena de morte (São Paulo, Brasiliense, 1995), Nada mais foi dito nem perguntado (São Paulo, Editora 34, 2001) e A prisão (São Paulo, Publifolha, 2002).
Outro traço revelador da impunidade decorre do tratamento diferenciado dos segmentos sociais, na colônia e no império, o que seria percebido por outro viajante, Johann Jakob von Tschudi, que, interessado no estado das colônias suíças, visitou o país na década de 1860: “quantas vezes aconteceu no Brasil que um homem rico e influente tivesse sentado no banco dos réus a fim de se justificar de seus crimes?”
Mais do que impunidade, esse tratamento diferenciado que se dispensa a quem rouba pouco e a quem rouba muito é uma perversa forma de violência. Afinal, no atual panorama de desigualdades, quem tem mais chance de permanecer preso no Brasil: um joão-ninguém que rouba R$370 de uma padaria ou um prefeito envolvido num desvio de verbas federais da ordem de R$ 60 milhões?…
Por
Jaciara Santos
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