O Brasil foi uma das primeiras nações americanas a instituir e a última a abolir a escravidão, que dominou 350 dos nossos 507 anos de história. Apesar da superação do escravismo constituir o mais significativo fato do nosso passado, neste 13 de Maio, o aniversário da Abolição transcorrerá, outra vez, semi-esquecido.
A Abolição já foi data magna, relembrada e festejada. Nos últimos anos, tem sido objeto de críticas radicais e verdadeira conspiração de silêncio por parte da grande mídia. Paradoxalmente, essas iniciativas recebem o apoio do movimento negro brasileiro que, ao contrário, deveria desdobrar-se na sua celebração e na discussão de significado histórico real daquela efeméride.
O caráter cordial, transigente e pacífico do brasileiro já foi grande mito nacional. A abolição da escravatura foi apresentada como prova dessa pretensa realidade. No exterior, o fim da instituição motivara lutas fratricidas. A guerra de Secessão causou quinhentos mil mortos nos EUA. No Haiti, em 1804, a destruição da ordem negreira motivou a mais violenta guerra social do Novo Mundo.
No Brasil, a transição ter-se-ia efetuado sem violências devido a instituições sensíveis ao progresso, a líderes esclarecidos e à humanitária alma popular. Nesse cenário de concórdia, brilharia a figura de Isabel - a Redentora. Apiedada com o sofrimento dos negros e despreocupada com a sorte do trono, teria assinado com pena de ouro o diploma que pôs fim ao cativeiro e, a seguir, ao trono imperial.
Em 13 de maio de 1888, começaria a construção de sociedade fraterna e desprovida de barreiras intransponíveis. As desigualdades existentes dever-se-iam a deficiências não essenciais da civilização brasileira, enraizada em concórdia estrutural entre ricos e pobres, brancos e negros. Ao menos, era o que se dizia.
Tidos como acontecimentos pátrios de impar importância, a Independência, a República e a Abolição teriam como denominador comum o caráter pacífico da civilização nacional. Apresentava-se também a essência patriarcal da ordem escravista como corolário da natureza magnânima do brasileiro, que quebrantaria confrontos de raça, credo e classe.
Só não via quem não quis
Com o fim da ditadura militar, em 1985, a organização popular e entidades negras combativas criaram as condições para desnudar a triste realidade subjacente à proposta da democracia racial e fraternidade brasileiras. As narrativas laudatórias sobre a Abolição, sobre a escravidão e sobre o caráter democrático nacional trincavam-se contra a triste realidade contemporânea.
Em fins dos anos setenta, diante dos olhos mais míopes, desnudava-se situação onde o povo negro constituía uma das parcelas mais sofridas de uma população crescentemente explorada, onde a pele escura dificultava a conquista do trabalho e facilitava o acesso à prisão, se não ao necrotério.
Desde os anos sessenta, as descrições fantasiosas sobre o passado do Brasil foram refutadas por cientistas sociais como Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso etc., que empreenderam análises mais objetivas, sobretudo dos séculos 19 e 20. Porém, em geral, esses autores negaram significado histórico à Abolição. Apontavam a inusitada violência do escravismo brasileiro, mas definiam a sua superação como um “negócio de brancos”, onde os cativos não teriam tido papel significativo e ganhos substanciais.
Em fins dos anos setenta, o movimento negro retomou sem crítica essa tese, para melhor denunciar a situação da população afrodescendente. Para desqualificar a Abolição, propôs que ela se efetuara sem indenização; que o movimento abolicionista buscava, libertando os cativos, mão-de-obra barata; que a emancipação talvez piorara as condições de existência das massas negras, tese defendida por Gilberto Freyre, em Sobrados e mocambos, de 1936.
Para melhor criticar os mitos da emancipação do povo negro em 1888, o movimento negro propôs a abominação do 13 de Maio e a celebração do 20 de Novembro como dia nacional da consciência negra no Brasil, data da morte de Zumbi, em 1695, o último grande chefe palmarino.
Apesar de bem intencionadas, essas leituras consolidaram as interpretações do 13 de Maio dos ideólogos das classes proprietárias, que procuravam escamotear a Abolição como resultado do esforço dos cativos aliados aos setores abolicionistas radicalizados. Assentavam a pedra mestra na construção do esquecimento do nosso mais importante acontecimento histórico - a revolução abolicionista de 1887-8.
Memória da resistência
O movimento negro esquecia que celebrar a Abolição não significa reafirmar os mitos da emancipação social do povo negro em 1888 e de Isabel como Redentora. Ignora que comemorar o fim da escravidão significa recuperar a importância daquela superação, através de frente política pluri-classista e do protagonismo dos cativos, naquele que foi o primeiro movimento de massas nacional de nosso passado.
Em forma alienada e imperfeita, o povo negro pobre sempre intuiu a importância de 1888. Apenas nos últimos anos essa consciência diluiu-se devido ao proselitismo anti-Abolição, verdadeira invenção da tradição que resultou em grave perda da memória histórica objetiva pelas classes trabalhadoras, em geral, e afrodescendentes, em particular.
Foi o profundo impacto da Libertação, em 1888, na consciência e vida dos cativos que levou o povo negro a rememorar o 13 de Maio com carinho, por um século, batizando com a data e o nome da princesa seus clubes e associações, festejando, assim, imerecidamente, Isabel, herdeira da casa de Bragança, grande responsável pela manutenção do cativeiro quase até o século 20.
Em inícios de 1980, Mariano Pereira dos Santos, ex-cativo centenário, que conhecera a miséria como homem livre, antes de morrer, afirmava comovido que, após a “Libertação”, o povo negro vivera “na glória”. Maria Benedita da Rocha, ex-cativa também centenária, referiu-se arrebatada ao fim do cativeiro na sua fazenda. Em 13 de maio de 1888, nas cidades e nos campos, os tambores e atabaques ressoaram poderosos, ferindo em derradeira vendeta os tímpanos dos negreiros derrotados.
A visão do 13 de Maio, pelo povo negro, como concessão da Redentora, constitui cristalização alienada na memória popular, determinada pela ideologia dominante, de acontecimento de profundo sentido histórico para os cativos e para a nacionalidade brasileira. Ou seja, constituiu o resultado de operação de diluição da memória do protagonismo dos cativos naqueles sucessos.
Não há sentido em antepor Palmares a 1888. A heróica epopéia palmarina jamais propôs, e historicamente não poderia ter proposto, a destruição da escravidão como um todo. Palmares resistiu por décadas, determinou a história do Brasil, mas foi derrotada. Apesar de seus limites, a revolução abolicionista foi vitoriosa e pôs fim inapelavelmente para sempre ao escravismo.
Escravizadores e escravizados
Desconhecer o sentido revolucionário de 1888 é olvidar a essência escravista de dois terços de passado brasileiro, é negar a contradição essencial que regeu por mais de trezentos anos de nossa história passada - escravizadores contra escravizados. Desconhecer aquele passado terrível significa sobretudo ignorar o caráter singular da gênese do Brasil contemporâneo,
Nos anos cinqüenta, autores como o sociólogo negro e comunista Clóvis Moura e o francês e trotskista Benjamin Péret produziram importantes leituras sobre o agir dos cativos, como lídima expressão da luta de classes no Brasil. Nos anos sessenta, Viotti da Costa, Stanley Stein etc. avançaram no conhecimento essencial da escravidão. Nos vinte anos seguintes, produziram-se numerosos estudos sobre a sociedade, a economia e as formas de resistência do trabalhador escravizado, destacando-se entre eles a apresentação do escravismo colonial como modo de produção historicamente novo, por Jacob Gorender, em O escravismo colonial.
Nesses anos, estudos, como o clássico Os últimos anos da escravidão no Brasil, de Robert Conrad, apresentaram a Abolição como o resultado da insurreição não sempre incruenta dos cativos cafeicultores que, nos últimos meses do cativeiro, abandonaram maciçamente as fazendas, reivindicando comumente relações contratuais de trabalho. Tais estudos desvelaram parcialmente a extrema tensão sob a qual o movimento abolicionista radicalizado alcançou a vitória, em 1888, e sua ligação com a massa escravizada, grande protagonista dessas jornadas.
Em 13 de maio, a herdeira imperial nada mais fez do que, após o projeto abolicionista ter sido aprovado no parlamento, sancionar a Lei Áurea, assinando o atestado de óbito de instituição agônica devido à desorganização imposta pela fuga multitudinária dos cativos. Durante todo o Primeiro e o Segundo Reinados, os Braganças defenderam renhidamente a escravidão, já que unidos umbilicalmente aos escravistas.
Nos meses finais da escravidão, os mais renitentes negreiros, que já reconheciam a crise final da instituição, defendiam ainda o cativeiro, sobretudo para prosseguir reivindicando a indenização pela propriedade libertada. Rui Barbosa, abolicionista de primeira hora, companheiro de luta do jovem poeta Castro Alves, no ministério da Fazenda da República, mandou queimar corajosamente os registros de posse de cativos para dificultar a reivindicação da “lavoura andrajosa”.
Foi a ação estrutural das classes escravizadas, durante os três séculos de cativeiro, que construiu as condições que ensejaram, mais tarde, a destruição da servidão. A rejeição permanente do cativo ao trabalho feitorizado impôs limites insuperáveis ao desenvolvimento da produção escravista, determinando altos gastos de coerção e vigilância que abriram espaços para formas de produção superiores.
Modo de produção escravista colonial
Em 1888, a revolução abolicionista destruiu o modo de produção escravista colonial que ordenara a sociedade no Brasil. Negar essa realidade devido às condições econômicas, passadas ou atuais, da população negra, é compreender a história com visões não históricas. Os limites da Abolição eram objetivos. Nos últimos anos da escravidão, o cativo era categoria social em declínio que lutava sobretudo pelos direitos cidadãos mínimos. Foi a reivindicação da liberdade civil que uniu a luta dos cativos rurais à dos cativos urbanos, então pouco representativos.
Não procede a proposta que a Abolição não teve conteúdo porque os cativos não foram indenizados. A propriedade latifundiária, a pouca difusão de hortas servis e a reivindicação prioritária da liberdade já dificultavam movimento pela distribuição de terras, que exigia a união de cativos, caboclos, posseiros, colonos etc., então praticamente impossível, devido ao baixo nível de consciência e organização e à elevada heterogeneidade e dispersão das classes rurais. Porém, tal medida foi defendida explicitamente pelos mais conseqüentes chefes abolicionistas - Rebouças, Patrocínio etc.
Na limitação das conquistas econômicas obtidas pela Abolição pesou a contra-revolução republicana - oligárquica e federalista - de 15 de novembro de 1889, que pôs fim ao movimento abolicionista como projeto reformista nacional. Os limites históricos da Abolição não devem minimizar a importância da conquista dos direitos políticos e civis mínimos por setecentos mil “escravos” e “ventre-livres”. Em 13 de maio de 1888, superava-se a distinção entre trabalhadores livres e escravizados, iniciando-se a história da classe operária brasileira como a compreendemos hoje.
Nos anos 1990, a derrota histórica do mundo trabalho e a euforia neoliberal determinaram os destinos gerais da historiografia. No Brasil como alhures, em tempos de Nova História, os holofotes da mídia, o interesse das editoras, o bon ton historiográfico apontaram para estudos monográficos, intimistas, biográficos e exóticos, tranqüilizadores das consciências e pacificadores dos espíritos. De ciência que procurava libertar, a história evoluiu à arte de entreter.
Decaíram o interesse e os incentivos para estudos sobre as classes trabalhadoras urbanas, o movimento camponês, os fenômenos essenciais da sociedade humana e estudos analíticos sobre o passado. As pesquisas sobre a escravidão, em desprestígio, foram dominadas pelas teses da escravidão benigna e consensual, defendidas no passado com singular inteligência e cabotinismo por Gilberto Freyre.
A revolução abolicionista foi o primeiro grande movimento de massas moderno, promovido pelos trabalhadores escravizados em aliança com libertos, trabalhadores livres, segmentos médios etc. Até agora, foi a única revolução social vitoriosa do Brasil. Se a situação que vivemos não nos agrada, a responsabilidade não cabe aos nossos ancestrais, que fizeram a sua revolução. Cabe simplesmente a nós, que não fizemos as nossas.
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